quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Notas

DEBATE IRRACIONAL: em qualquer iniciativa de alcance público, há discussões, alinhando-se de um lado e de outro os prós e contras da medida. Espera-se, como mínimo, um debate racional. Não foi isso o que se viu no caso da importação da mão de obra especializada cubana. Os médicos da ilha caribenha não estão sendo bem recebidos. Em alguns locais, são até mesmo hostilizados por seus colegas brasileiros. Atitude que levou a revista brasileira Carta Capital (04/09) a fazer uma afirmação radical: "setores da classe média brasileira vivem um estado terminal de emburrecimento e canalhice". O motivo foi a manifestação do Sindicato dos Médicos do Ceará por ocasião da chegada ali dos primeiros médicos cubanos.
RAZÃO PARA OS DOIS LADOS: um olhar crítico e imparcial sobre a questão vai mostrar que, de fato, existem quase mil municípios sem médicos. As vagas do Programa Mais Médicos foram abertas, inicialmente só para os brasileiros, mas não foram preenchidas, justificando assim a chamada dos estrangeiros. De outra parte, também é verdade que, na maioria desses municípios, não existem condições objetivas para o exercício da medicina. Faltam-lhes estruturas mínimas e suas unidades básicas de saúde estão desprovidas até mesmo dos materiais de primeiros socorros. Há outros problemas, nas duas pontas. Veja abaixo.
VERDADES DESAGRADÁVEIS: algumas dessas mazelas brasileiras são agravadas por uma mistura inconveniente entre incompetência, corrupção e falta de seriedade no serviço público. As denúncias vão desde desvios de materiais e medicamentos, compras superfaturadas e descumprimento de obrigações funcionais. Há suspeitas de comercialização de medicamentos falsificados ou vencidos. Também há casos de hospitais particulares que fraudam o SUS (Sistema Único de Saúde) e da prática de conluios entre médicos, hospitais e fabricantes de equipamentos de Raios-X ou de ressonâncias. Essa triste realidade não está localizada em cidades pequenas ou municípios pobres. Escândalos pipocam em todas as latitudes. Atingem prefeitos, diretores de hospitais, médicos que descumprem a jornada de trabalho, empresas e laboratórios. Não vamos entrar em detalhes e nem citar exemplos, mas essas notícias fazem parte do cotidiano brasileiro.
DOIS TIPOS DE MEDICINA: por motivos históricos e ideológicos, a medicina cubana se desenvolveu em bases comunitárias, por necessidade, dando ênfase à prevenção e à família. Usa o estetoscópio, o aparelho de pressão, apalpa o paciente e considera o histórico pessoal e familiar. A medicina brasileira, já há tempos, abandonou a ênfase na clínica geral, dando preferência às especialidades. É uma medicina de diagnóstico, apoiada em exames laboratoriais e equipamentos de imagem e ressonância. Desenvolveu a atenção especializada, considerando quase tudo de média ou alta complexidade. O ideal seria a convivência dessas duas vertentes. Razão para aqueles que condenam, nos dois espectros, a medicina comercial ou mercadológica.
OS MÉDICOS CUBANOS NO MUNDO: a ênfase na medicina comunitária e a transformação de todos os seus hospitais em campos docentes, fizeram de Cuba um país exportador de médicos e importador de estudantes de medicina. Não são poucos os brasileiros que optam por estudar por lá, onde se sustentam com menos de 100 dólares/mês. No Brasil, as faculdades de medicina são muito caras e, mesmo quando o estudante passa pelo difícil filtro do vestibular, não é fácil se manter numa escola pública. Por essas diferenças, há médicos cubanos em mais de 50 países. Quando foram contratados pela Venezuela, como aqui, houve a mesma reação negativa e a oposição dos médicos venezuelanos. Hoje, considera-se que a Venezuela não pode viver sem eles. Os cubanos ganharam a confiança das comunidades pobres. Assim também ocorreu na África do Sul e em outros países.
QUARTEIRIZAÇÃO: a qualificação de "escravos do socialismo", como se ouviu nas manifestações de Fortaleza, deve-se à forma de contratação dos médicos cubanos. Na verdade, o Brasil está diante de um típico processo de quarteirização: o governo brasileiro paga a Opas (Organização Panamericana de Saúde) que repassa o dinheiro ao governo cubano que, por sua vez, remunera o profissional que trabalha no Brasil. De acordo com as autoridades brasileiras, dos dez mil reais mensais combinados, chegarão ao bolso do médico aproximadamente 40% desse valor (não é o que dizem os médicos cubanos instalados fora de Cuba: veja abaixo). Cuba tem na exportação de mão de obra a sua maior fonte de receitas.
DEPOIMENTO DE UM MÉDICO CUBANO: em depoimento à Câmara Federal, o médico cubano, naturalizado brasileiro e há anos entre nós, Carlos Rafael Gimenez, contestou o ministro da Saúde, Alexandre Padilha. Defendeu seus colegas cubanos, informando tratar-se de pessoas bem formadas, com boa experiência, a maioria com pós-graduação, mestrado ou doutorado. Disse que eles estão felizes por vir ao Brasil, já que em Cuba trabalham de 60 a 70 horas semanais por um salário de aproximadamente 50 dólares mensais. Que aqui ganharão no máximo 300 dólares, ficando o restante com os irmãos Castro (governo cubano). Mas, afirmou que eles não têm o direito de ir e vir, não podem pedir asilo e, em caso de descumprimento das cláusulas contratuais, suas famílias podem ser retaliadas. Disse que Cuba não é uma democracia, como afirmou o ministro Padilha e que, quem ajuda os irmãos Castro, "suja as suas mãos de sangue".
VÍNCULO EMPREGATÍCIO: o ministro Padilha disse que os médicos não necessitam de vínculo empregatício porque são empregados do governo cubano. No Brasil, alguns artigos (escritos por jornalistas, políticos e advogados), mostram que o contrato viola a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e não resiste a uma mínima fiscalização do Ministério do Trabalho ou auditoria do Ministério Público. Ainda, o sistema viola também o artigo 5º da Constituição Federal. Realmente, esses médicos, contrariamente aos trabalhadores brasileiros, não pagarão Imposto de Renda na Fonte, não serão registrados, não terão Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, não pagarão (e nem terão) aposentadoria e nem receberão 13º Salário e também não auferirão os rendimentos pelos quais foram contratados. Seus passaportes estão retidos na Embaixada Cubana do Brasil. Enfim, os médicos cubanos vieram ao Brasil, comparam esses analistas, como meras mercadorias, daí a expressão "escravos modernos".
ASPECTOS LEGAIS: algumas das entidades representativas dos médicos brasileiros anunciam medidas judiciais para impedir que o modelo atual de contratação prossiga. O principal argumento está ancorado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/1996). Ali consta a exigência: os médicos estrangeiros devem revalidar os seus diplomas em instituições públicas nacionais. O Brasil tem caras faculdades de medicina e até se pode duvidar da qualidade de ensino de algumas delas, mas os seus alunos, depois de formados, não passam por qualquer exame de suficiência (como os advogados, por exemplo). Já os estrangeiros devem passar pelo"revalida".
PERIGO À VISTA: sendo o Brasil a terra do jeitinho, os meios de comunicação já detectaram uma perigosa tendência. Alguns municípios querem espertamente baixar as despesas com pessoal. Alguns prefeitos já sinalizaram que podem substituir seus médicos por médicos do programa federal. Desta forma, exclui um profissional de sua folha de pagamentos e coloca outro na folha do governo. O ministro Padilha disse que isso não ocorrerá, mas no Brasil tudo é possível.
OUTROS ASPECTOS: um país com grandes bolsões de miséria e pobreza não pode prescindir de uma medicina mais popular. Na China, a existência dos "médicos descalços" melhorou muito os cuidados com as pessoas. Vale a pena pensar nas possibilidades de um novo tipo de profissional, intermediário, capaz dos primeiros socorros e das orientações básicas. A medicina no Brasil é uma reserva de mercado radical. O país tem condições de preparar esses profissionais em pouco tempo. Na realidade, o país sempre teve algo aproximado disso, desde as parteiras aos práticos de farmácia, curandeiros à parte.
IMPERATIVO MORAL: uma crítica recorrente tem um viés moral: como o governo federal pode gastar tanto em Cuba, negligenciando os serviços públicos internos? Está claro, afirmou Ives Gandra da Silva Martins, que estamos diante de uma preferência de caráter ideológico. Ele escreveu, em artigo publicado pelo Estadão (29/08), que Dilma "empresta dinheiro a Cuba e a outros países bolivarianos, mas não aplica no nosso país o necessário para que haja assistência gratuita, no mínimo, civilizada".  Também ressalta os aspectos relacionados com as ilegalidades, já expostas acima.
O QUE PENSA O POVO: pesquisa feita pela CNT (Confederação Nacional dos Transportes) mostra que 73,9% dos entrevistados apóiam o Programa Mais Médicos. Quase 50% (49,6%) acreditam que o programa "solucionará problemas graves" e 34,7% dizem que "o serviço vai melhorar". A pesquisa envolveu 2.002 entrevistas, em 135 cidades de 21 estados, entre os dias 31 de agosto e 4 de setembro. Em outras palavras, parece, a população está a favor.
NA FRITADA DOS OVOS: ao que tudo indica, o programa vai seguir. Teremos ações judiciais, má vontade da maioria dos conselhos profissionais e associações médicas, acusações recorrentes de “programa eleitoreiro”, sensacionalismo midiático a cada deslize profissional e outros imprevistos. Mas, com apoio popular, o governo seguirá em frente, resoluto. Na Justiça (já há algumas decisões), ganhará a tese de conceder “registros provisórios de trabalho a profissionais formados no exterior”. Os CRMs (Conselhos Regionais de Medicina) vão ser obrigados a fornecer esses registros provisórios. Dá para prever que alguns desses médicos queiram permanecer no país (algo impossível se Dilma continuar no governo), que Cuba (os “irmãos Castro“ na linguagem dos críticos.) receberá grande quantidade de divisas brasileiras, que os nossos cursos de medicina continuarão caros e que nossa saúde continuará sendo negligenciada. Só daqui a algumas gerações, nossos problemas mais urgentes, talvez, sejam resolvidos.